A perversidade social no transporte píblico
Estamos incluindo em nosso blog a valiosa contribuição do amigo Walter Nunes Braz Júnior, na qual ele faz uma análise do transporte coletivo na maioria das grandes cidades do país.
Introdução
A visão que apresento é tanto de alguém que se informa sobre o assunto quanto de usuário, mas não é minha intenção simplesmente "chover no molhado", apesar de querer trazer atenção a aspectos que já são da vivência dos usuários.
O leitor desse texto não encontrará muitas estatísticas. Poderiam ser citadas muitas, como 37 milhões de brasileiros que não usam os ônibus devido às tarifas (Ação Nacional Tarifa Cidadã), mobilidade de 1 deslocamento/hab·dia ou abaixo nos dias úteis e abaixo de 0,50 deslocamento/hab·dia nos sábados e domingos nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife (Mobilidade e Pobreza, Itrans) ou 45% dos prefeitos de 47 cidades com mais de 300.000 habitantes insatisfeitos com os valores das tarifas em seus municípios (Pesquisa com dirigentes municipais de transporte, revista Transporte Moderno). Mas o problema a ser discutido é humano, não físico-matemático, estatístico ou contábil, e algumas estatísticas apenas tornam pior problemas que já são preocupantes por si mesmos.
A perversidade social no transporte público
Estratificação físico-geográfica. Os proprietários de automóveis têm, entre outras vantagens, grande flexibilidade de itinerário, horário e a de velocidade que o trânsito e as leis permitirem. Fora isso, também podem ter uma espécie de extensão móvel de suas salas de estar, pelos confortos que os seus automóveis lhes oferecem. Mas as diferenças entre o transporte coletivo e o individual não param em conforto e flexibilidades. Moradores de edifícios e condomínios de luxo já "põem o pé pra fora" em seus automóveis. Quando eles estão prejudicados, têm de se deslocar do estacionamento mais próximo que puderam achar ao destino. Em tudo isso, eles se deslocam em leitos de ruas (os seus automóveis) e calçadas (eles mesmos) de áreas nobres, não raro muito bem cuidados. As calçadas são pouco usadas por proprietários de automóveis, mesmo em pequenos deslocamentos (quem conhece algum deles já deve ter observado isso!). Essa análise, como se pode observar, não considera os proprietários de automóveis de classes não tão favorecidas. Os usuários de ônibus, por outro lado, além do ônibus usam também as calçadas e os leitos das ruas dos seus bairros (centenas de metros ou mesmo alguns quilômetros deles) para chegar aos pontos. Freqüentemente, nenhuma rua desse trajeto é pavimentada, ou apenas as do itinerário do ônibus e poucas outras são. As linhas, não raro, são radiais ou semi-expressas, logo o usuário só não terá de fazer um deslocamento significativo a pé ou por outro meio de transporte público se o seu destino estiver em algum lugar próximo ao caminho do seu bairro ao Centro (bairros mais adensados podem ter mais linhas, até mesmo algumas diametrais, e viverão com menos intensidade esse problema). As calçadas da periferia são muitas intransitáveis ou quase inexistentes e muitas do Centro são tratadas como uma espécie de faixa de domínio do leito da via ou dos estabelecimentos comerciais vizinhos. As classes média e alta só sentirão os problemas da pavimentação e do trânsito das vias da área nobre, enquanto os pobres viverão os problemas das vias do resto da cidade, das calçadas e dos meios de transporte público. E também pode ser observado em regiões metropolitanas que as linhas da periferia da cidade principal e as metropolitanas das outras cidades têm ponto de retorno na parte mais degradada do Centro da cidade principal, enquanto as da área nobre passam pela sua parte mais viva.
Consumo de tempo. De acordo com "Perfil das viagens diárias da população da metrópole", da Câmara Municipal de São Paulo, obra citada no livro "Transporte Humano", da ANTP, 45,5% dos usuários do transporte público de São Paulo passam duas horas por dia ou mais em viagem. Somadas essas duas horas, as oito horas por dia do expediente de trabalho, os tempos de espera e os dos deslocamentos a pé, não estaremos longe do expediente da Revolução Industrial (12 ou 14 horas por dia)!
A mobilidade dos pobres. Com as tarifas altas do transporte coletivo, seus usuários costumam desistir de deslocamentos que não podem fazer sem desconforto a pé. O deslocamento do pobre até o local de trabalho está garantido, porque é pago por seu empregador. O deslocamento até a escola também, se a prefeitura tiver um transporte escolar que o atenda. Para os demais, o dinheiro é um grande limitante. Essa questão é tratada no estudo Mobilidade e Pobreza do Itrans. Pelos valores das tarifas, além da própria atividade da cidade, o transporte coletivo transporta menos indivíduos que interagem entre si e com a cidade que empregados a serviço ou entre residência e local de trabalho.
Quanto você trabalha apenas para pagar a sua passagem?
exemplo
Qual o total das tarifas que você paga por dia em cada sentido?
A
se almoça em casa, considere também
2,50
Qual o seu salário mensal?
B
-
350,00
Recebe outros benefícios? Quanto?
C
-
0,00
Recebe vales-transporte para quantos deslocamentos por mês?
D
geralmente 2 vezes o número de dias úteis
44
Seu salário mensal normal é
E
= A × D + B + C
460,00
De quantos dias são as suas férias?
F
-
30
Valor do vale-transporte não recebido nas férias
G
= A × D × F / 30
110,00
Seu salário anual é
H
= 12 × E + B - G
5.870,00
Quantas horas você trabalha por semana?
I
-
44
Sua jornada de trabalho anual é
J
= (365 - F) × I / 7
2.106
Resultado
L
= 2 × A × J / H
1,80
M
parte inteira de L
1
N
60 × parte decimal de L
48
Você trabalha
1
hora(s) e
48
minutos por dia útil apenas para pagar o seu deslocamento ao local de trabalho.
M
N
As condições do transporte coletivo. Dizer que o transporte coletivo é desconfortável é não dizer nada novo a quem pelo menos já experimentou usá-lo em horários que não sejam os menos carregados. Mesmo assim, vamos tentar descrever esse desconforto. Em horários de pico, a lotação é a máxima (em algumas linhas, alguns passageiros precisam se segurar nos corrimões das portas de entrada). Os intervalos são razoáveis quando há uma demanda que os justifique matematicamente. Do contrário, usuários com um horário certo para chegar ao seu destino podem escolher uma viagem que sabem que chegará bons minutos antes porque chegarão atrasados se escolherem a próxima. Em regiões metropolitanas, algumas linhas ligam bairros-dormitório (bairros residenciais com atividade comercial e de serviços inexpressivas) a pontos centrais de outras cidades da metrópole, geralmente a principal. Os usuários dessas linhas atravessarão divisas municipais nos ônibus, e quem iniciar a viagem em pé não conseguirá se assentar até poucos quilômetros antes do final ou ponto de retorno da linha. Por questão de economia, também se adotam itinerários sinuosos pra se atender bairros onde há uma demanda não inexpressiva mas que ainda não justifica uma linha específica, ou como uma "emenda" a uma linha já existente para se atender outros bairros mais adiante.
Está evidente que o transporte por ônibus (nem tanto o metrô, cujo usuário tem perfil semelhante ao do usuário de automóvel) é um transporte "de pobre" (no sentido pejorativo) até certo ponto por projeto, não por acidente. No horário de pico, a lotação de projeto é a lotação máxima, logo a condição em que os usuários desse horário viajam é apenas um pouco pior que o previsto. O intervalo é em torno do quociente da lotação de projeto pela demanda estimada. Assim, onde a demanda é alta, a oferta é melhor, mas onde é baixa chega-se a um intervalo alto sem sinal de maior consideração. Os ônibus nem sempre são muito velhos, especialmente onde o gestor de transportes restringe a idade média das frotas, mas mesmo aí pode se observar que a renovação da frota não é aleatória: os veículos mais novos sempre são alocados em certas linhas, que servem bairros mais adensados, com usuários de renda mais alta ou simplesmente que têm um itinerário ao longo de vias melhor conservadas. Os carros substituídos por esses são realocados também em outras certas linhas, os substituídos nessas outras linhas vão para outras certas linhas, e assim por diante. Além disso, outros problemas como veículos mal conservados, horários não cumpridos ou sinuosidades do itinerário não atendidas não são coisas raras (com tudo isso, a operadora poderá ter reembolsos de custos que não houveram).
Uma atividade comercial como qualquer outra. Não é por acaso que as grandes metrópoles, onde os problemas são mais difíceis de serem ignorados, são os lugares em que a administração municipal controla mais de perto o transporte por ônibus. Quem conhece a situação do sistema de ônibus de alguma cidade onde a iniciativa privada é o seu gerenciador na prática sabe os problemas que isso costuma causar. Problemas que vão desde tarifas supercalculadas a assassinatos de pessoas com empenho em melhorar a qualidade do sistema, passando por intervenção junto ao governo municipal para impedir a vinda de novas empresas e diminuição da oferta quando se deseja e não consegue aumento na tarifa.
Conclusão 1: buscando soluções ou escolhendo erros?
Felizmente está se fazendo a observação de que o transporte público é uma questão social. Mesmo assim, ainda se comete alguns erros ao se pensar nesse assunto, embutidos inclusive em trabalhos sobre os problemas do transporte urbano.
Quem determina e alguns que pensam sobre o valor da tarifa parecem apenas dividir custo total por número de usuários equivalentes sem maiores preocupações. Assim, esses usuários deverão cobrir quase integralmente esse custo enquanto financiam também a qualidade do trânsito da área nobre com os impostos municipais, pagos diretamente ou embutidos nas tarifas. Como afirma o trabalho "A Prioridade do Transporte Coletivo", da NTU, "A lógica perversa de que investimentos no sistema viário, beneficiando majoritariamente os proprietários de veículos particulares, têm que ser pagos pela sociedade como um todo, enquanto investimentos em transporte público têm que ser pagos apenas pelos beneficiários diretos (passageiros pagantes) prevalecem até hoje". Persistir nesse erro é deixar de fazer qualquer intervenção séria para tratar os problemas do transporte público.
Os sistemas integrados têm seu valor, mas costumam ser mais espetáculos de Arquitetura e Eletrônica do que soluções. Usuários que demandam deslocamentos mais longos são os menos beneficiados. Não pagam uma tarifa muito menor, não perdem muito menos tempo em esperas e os que já precisavam usar mais de uma linha geralmente vêem a maior diferença prática apenas até o centro da cidade, onde o antigo ônibus bairro-centro deu lugar a um alimentador conectado a alguns troncais, o que freqüentemente gera reclamações. Isso quando esses usuários não ficam simplesmente fora da abrangência do sistema. Cabe aqui também um comentário a um trecho de um estudo da NTU, "Transporte Público Urbano - Crise e Oportunidades" (os grifos são meus):
"A tarifa única e a integração tarifária, a cada dia mais difundidas, estimulam este processo de extensão periférica das áreas urbanas em regime de baixas densidades residenciais, pois criam uma indiferença do preço pago pelo usuário em relação à distância percorrida ou ao número de linhas de transporte utilizadas. Sabendo que as tarifas do transporte são aproximadamente as mesmas qualquer que seja a distância entre sua residência e os pólos de atração/produção de viagens, ele tende a escolher localizações residenciais em periferias afastadas onde é mínimo o valor dos terrenos (embora permaneça a penalização do tempo de viagem)."
Ora, se um chefe de família de baixa renda procura onde morar em uma região com tarifa única, os custos com transporte coletivo se tornam um problema a menos, não um estímulo para morar na periferia, como o texto parece dar a entender. Afinal, os pobres que não escolhem os bairros distantes escolhem as favelas.
Diminuir os impostos sobre as empresas de ônibus, como defende a Ação Nacional Tarifa Cidadã, é uma outra armadilha sutil, como bem mostrou o texto "Riscos do subsídio federal para o transporte urbano", editorial do jornal Valor Econômico de 17.07.06. A renúncia de impostos dessas empresas de ônibus tende a se reverter primeiro em aumento dos lucros e depois em algum benefício aos usuários. E uma premissa que leva a essa idéia é a de que as empresas estão sobrecarregadas demais financeiramente para que as tarifas sejam reduzidas, e isso costuma ser um exagero da realidade (há casos em que existe até suborno a vereadores, que, como todas as despesas, é incluído na tarifa).
Conclusão 2: outros assuntos relacionados
Valor dos salários. É fato conhecido que alguns trabalhadores andam a pé (às vezes, distâncias de 3 quilômetros ou mais), ou sequer voltam para casa em dias úteis, para usar parte do vale-transporte para as outras despesas do lar. Não é por outro motivo senão o grande impacto das tarifas para algumas categorias que as gratuidades existem (tirados, é claro, os privilégios injustos).
Vitalização das cidades. Centros 24 horas, ou mesmo que funcionem também aos domingos e feriados, opções de lazer, bibliotecas e mesmo alguns serviços, todos abertos aos sábados, domingos e feriados e acessíveis ao público de baixa renda, criarão uma demanda de transporte público. Se as tarifas não forem proibitivas, a cidade como um todo estará mais acessível a esse público (a cidade está praticamente "morta" quando eles não estão trabalhando!). Uma descentralização das cidades também é interessante para o transporte público, pois se houverem centros regionais que gerem demanda, isso pode baixar a produção quilométrica.
Habitação. É admirável o esforço de alguns prefeitos na construção de conjuntos habitacionais para diminuir a deficiência habitacional dos seus municípios. Também é compreensível que esses e os loteamentos para o público de baixa renda sejam em regiões afastadas da cidade, ou em cidades-dormitório. Mas na forma como são construídos, eles serão geradores de viagens a mais para o Centro da cidade ou da metrópole, produzindo mais linhas de grande extensão, baixo índice de passageiros por quilômetro e fatalmente deficitárias. Centros de comércio, serviços e lazer nas proximidades desses bairros beneficiarão não só as populações dos mesmos como as de bairros já existentes e futuros.
Conclusão 3: pensar em soluções
Lembro-me de uma história cujo resumo é o seguinte: um administrador, negligente e desonesto, recebeu certa vez a incumbência de acompanhar a construção de uma casa. Esse administrador trabalhou como sempre, inclusive com materiais de tão má qualidade que os próprios trabalhadores temiam pela ruína da obra enquanto trabalhavam. Ao final, seu patrão, que havia premeditado tudo, o despediu e entregou-lhe a casa como pagamento.
Se parecer antipática a idéia de uma empresa operadora municipal ou de capital misto, procure-se viabilizar pequenas empresas de transporte coletivo, se possível em forma de cooperativas. A retirada de certas empresas tradicionais, mesmo penosa, trará mais ganhos que perdas.
Se for feita uma revisão das gratuidades, que não se vilanize os estudantes, nem se trate as aposentadorias miseráveis e as mais volumosas no mesmo pacote. Caso se ache interessante a concessão de desconto ou gratuidade de acordo com a renda familiar, o maior problema é a seriedade e a eficiência do processo, seguido de qual a quantia do subsídio.
Onde existirem estações de integração, que elas sejam também centros de vivência até o ponto que for possível.
Ônibus rodoviários para linhas metropolitanas mais longas (não são poucos os que viajam mais de 20 km por sentido a cada dia útil) também não devem ser descartados de pronto.
O começo de uma ação séria é pensar em sistemas de transporte coletivo de qualidade, em tarifas mais compatíveis com a renda dos usuários e em como e de onde arrecadar fora do sistema a quantia que for necessária. Sem discutir a fundo a parte política-tributária, não é raro os governos mostrarem como questão de viabilidade o que é questão de interesse. Não é nada simplório dizer que os recursos para fazer algo em favor do usuário carente do transporte público (seja subsídio ou qualquer outra política) já existem em algum lugar entre a União e o Município. Aos que quiserem números, a arrecadação de impostos do ano passado foi quase 40% do Produto Interno Bruto. Isso equivale a cada trabalhador trabalhar cerca de 5 meses apenas para pagar os impostos! Também é importante que mais profissionais envolvíveis no processo troquem justificativas por soluções, talvez construindo projetos com a comunidade. Se listarmos o que já foi considerado "economicamente inviável", incluiremos a abolição da escravatura. Se listarmos as "idéias absurdas", incluiremos a Teoria dos Germes. Se listarmos as "idéias subversivas", incluiremos os governos não absolutistas.
Walter Nunes Braz Junior
graduando em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Viçosa
Viçosa, 27 de outubro de 2 006
O leitor desse texto não encontrará muitas estatísticas. Poderiam ser citadas muitas, como 37 milhões de brasileiros que não usam os ônibus devido às tarifas (Ação Nacional Tarifa Cidadã), mobilidade de 1 deslocamento/hab·dia ou abaixo nos dias úteis e abaixo de 0,50 deslocamento/hab·dia nos sábados e domingos nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife (Mobilidade e Pobreza, Itrans) ou 45% dos prefeitos de 47 cidades com mais de 300.000 habitantes insatisfeitos com os valores das tarifas em seus municípios (Pesquisa com dirigentes municipais de transporte, revista Transporte Moderno). Mas o problema a ser discutido é humano, não físico-matemático, estatístico ou contábil, e algumas estatísticas apenas tornam pior problemas que já são preocupantes por si mesmos.
A perversidade social no transporte público
Estratificação físico-geográfica. Os proprietários de automóveis têm, entre outras vantagens, grande flexibilidade de itinerário, horário e a de velocidade que o trânsito e as leis permitirem. Fora isso, também podem ter uma espécie de extensão móvel de suas salas de estar, pelos confortos que os seus automóveis lhes oferecem. Mas as diferenças entre o transporte coletivo e o individual não param em conforto e flexibilidades. Moradores de edifícios e condomínios de luxo já "põem o pé pra fora" em seus automóveis. Quando eles estão prejudicados, têm de se deslocar do estacionamento mais próximo que puderam achar ao destino. Em tudo isso, eles se deslocam em leitos de ruas (os seus automóveis) e calçadas (eles mesmos) de áreas nobres, não raro muito bem cuidados. As calçadas são pouco usadas por proprietários de automóveis, mesmo em pequenos deslocamentos (quem conhece algum deles já deve ter observado isso!). Essa análise, como se pode observar, não considera os proprietários de automóveis de classes não tão favorecidas. Os usuários de ônibus, por outro lado, além do ônibus usam também as calçadas e os leitos das ruas dos seus bairros (centenas de metros ou mesmo alguns quilômetros deles) para chegar aos pontos. Freqüentemente, nenhuma rua desse trajeto é pavimentada, ou apenas as do itinerário do ônibus e poucas outras são. As linhas, não raro, são radiais ou semi-expressas, logo o usuário só não terá de fazer um deslocamento significativo a pé ou por outro meio de transporte público se o seu destino estiver em algum lugar próximo ao caminho do seu bairro ao Centro (bairros mais adensados podem ter mais linhas, até mesmo algumas diametrais, e viverão com menos intensidade esse problema). As calçadas da periferia são muitas intransitáveis ou quase inexistentes e muitas do Centro são tratadas como uma espécie de faixa de domínio do leito da via ou dos estabelecimentos comerciais vizinhos. As classes média e alta só sentirão os problemas da pavimentação e do trânsito das vias da área nobre, enquanto os pobres viverão os problemas das vias do resto da cidade, das calçadas e dos meios de transporte público. E também pode ser observado em regiões metropolitanas que as linhas da periferia da cidade principal e as metropolitanas das outras cidades têm ponto de retorno na parte mais degradada do Centro da cidade principal, enquanto as da área nobre passam pela sua parte mais viva.
Consumo de tempo. De acordo com "Perfil das viagens diárias da população da metrópole", da Câmara Municipal de São Paulo, obra citada no livro "Transporte Humano", da ANTP, 45,5% dos usuários do transporte público de São Paulo passam duas horas por dia ou mais em viagem. Somadas essas duas horas, as oito horas por dia do expediente de trabalho, os tempos de espera e os dos deslocamentos a pé, não estaremos longe do expediente da Revolução Industrial (12 ou 14 horas por dia)!
A mobilidade dos pobres. Com as tarifas altas do transporte coletivo, seus usuários costumam desistir de deslocamentos que não podem fazer sem desconforto a pé. O deslocamento do pobre até o local de trabalho está garantido, porque é pago por seu empregador. O deslocamento até a escola também, se a prefeitura tiver um transporte escolar que o atenda. Para os demais, o dinheiro é um grande limitante. Essa questão é tratada no estudo Mobilidade e Pobreza do Itrans. Pelos valores das tarifas, além da própria atividade da cidade, o transporte coletivo transporta menos indivíduos que interagem entre si e com a cidade que empregados a serviço ou entre residência e local de trabalho.
Quanto você trabalha apenas para pagar a sua passagem?
exemplo
Qual o total das tarifas que você paga por dia em cada sentido?
A
se almoça em casa, considere também
2,50
Qual o seu salário mensal?
B
-
350,00
Recebe outros benefícios? Quanto?
C
-
0,00
Recebe vales-transporte para quantos deslocamentos por mês?
D
geralmente 2 vezes o número de dias úteis
44
Seu salário mensal normal é
E
= A × D + B + C
460,00
De quantos dias são as suas férias?
F
-
30
Valor do vale-transporte não recebido nas férias
G
= A × D × F / 30
110,00
Seu salário anual é
H
= 12 × E + B - G
5.870,00
Quantas horas você trabalha por semana?
I
-
44
Sua jornada de trabalho anual é
J
= (365 - F) × I / 7
2.106
Resultado
L
= 2 × A × J / H
1,80
M
parte inteira de L
1
N
60 × parte decimal de L
48
Você trabalha
1
hora(s) e
48
minutos por dia útil apenas para pagar o seu deslocamento ao local de trabalho.
M
N
As condições do transporte coletivo. Dizer que o transporte coletivo é desconfortável é não dizer nada novo a quem pelo menos já experimentou usá-lo em horários que não sejam os menos carregados. Mesmo assim, vamos tentar descrever esse desconforto. Em horários de pico, a lotação é a máxima (em algumas linhas, alguns passageiros precisam se segurar nos corrimões das portas de entrada). Os intervalos são razoáveis quando há uma demanda que os justifique matematicamente. Do contrário, usuários com um horário certo para chegar ao seu destino podem escolher uma viagem que sabem que chegará bons minutos antes porque chegarão atrasados se escolherem a próxima. Em regiões metropolitanas, algumas linhas ligam bairros-dormitório (bairros residenciais com atividade comercial e de serviços inexpressivas) a pontos centrais de outras cidades da metrópole, geralmente a principal. Os usuários dessas linhas atravessarão divisas municipais nos ônibus, e quem iniciar a viagem em pé não conseguirá se assentar até poucos quilômetros antes do final ou ponto de retorno da linha. Por questão de economia, também se adotam itinerários sinuosos pra se atender bairros onde há uma demanda não inexpressiva mas que ainda não justifica uma linha específica, ou como uma "emenda" a uma linha já existente para se atender outros bairros mais adiante.
Está evidente que o transporte por ônibus (nem tanto o metrô, cujo usuário tem perfil semelhante ao do usuário de automóvel) é um transporte "de pobre" (no sentido pejorativo) até certo ponto por projeto, não por acidente. No horário de pico, a lotação de projeto é a lotação máxima, logo a condição em que os usuários desse horário viajam é apenas um pouco pior que o previsto. O intervalo é em torno do quociente da lotação de projeto pela demanda estimada. Assim, onde a demanda é alta, a oferta é melhor, mas onde é baixa chega-se a um intervalo alto sem sinal de maior consideração. Os ônibus nem sempre são muito velhos, especialmente onde o gestor de transportes restringe a idade média das frotas, mas mesmo aí pode se observar que a renovação da frota não é aleatória: os veículos mais novos sempre são alocados em certas linhas, que servem bairros mais adensados, com usuários de renda mais alta ou simplesmente que têm um itinerário ao longo de vias melhor conservadas. Os carros substituídos por esses são realocados também em outras certas linhas, os substituídos nessas outras linhas vão para outras certas linhas, e assim por diante. Além disso, outros problemas como veículos mal conservados, horários não cumpridos ou sinuosidades do itinerário não atendidas não são coisas raras (com tudo isso, a operadora poderá ter reembolsos de custos que não houveram).
Uma atividade comercial como qualquer outra. Não é por acaso que as grandes metrópoles, onde os problemas são mais difíceis de serem ignorados, são os lugares em que a administração municipal controla mais de perto o transporte por ônibus. Quem conhece a situação do sistema de ônibus de alguma cidade onde a iniciativa privada é o seu gerenciador na prática sabe os problemas que isso costuma causar. Problemas que vão desde tarifas supercalculadas a assassinatos de pessoas com empenho em melhorar a qualidade do sistema, passando por intervenção junto ao governo municipal para impedir a vinda de novas empresas e diminuição da oferta quando se deseja e não consegue aumento na tarifa.
Conclusão 1: buscando soluções ou escolhendo erros?
Felizmente está se fazendo a observação de que o transporte público é uma questão social. Mesmo assim, ainda se comete alguns erros ao se pensar nesse assunto, embutidos inclusive em trabalhos sobre os problemas do transporte urbano.
Quem determina e alguns que pensam sobre o valor da tarifa parecem apenas dividir custo total por número de usuários equivalentes sem maiores preocupações. Assim, esses usuários deverão cobrir quase integralmente esse custo enquanto financiam também a qualidade do trânsito da área nobre com os impostos municipais, pagos diretamente ou embutidos nas tarifas. Como afirma o trabalho "A Prioridade do Transporte Coletivo", da NTU, "A lógica perversa de que investimentos no sistema viário, beneficiando majoritariamente os proprietários de veículos particulares, têm que ser pagos pela sociedade como um todo, enquanto investimentos em transporte público têm que ser pagos apenas pelos beneficiários diretos (passageiros pagantes) prevalecem até hoje". Persistir nesse erro é deixar de fazer qualquer intervenção séria para tratar os problemas do transporte público.
Os sistemas integrados têm seu valor, mas costumam ser mais espetáculos de Arquitetura e Eletrônica do que soluções. Usuários que demandam deslocamentos mais longos são os menos beneficiados. Não pagam uma tarifa muito menor, não perdem muito menos tempo em esperas e os que já precisavam usar mais de uma linha geralmente vêem a maior diferença prática apenas até o centro da cidade, onde o antigo ônibus bairro-centro deu lugar a um alimentador conectado a alguns troncais, o que freqüentemente gera reclamações. Isso quando esses usuários não ficam simplesmente fora da abrangência do sistema. Cabe aqui também um comentário a um trecho de um estudo da NTU, "Transporte Público Urbano - Crise e Oportunidades" (os grifos são meus):
"A tarifa única e a integração tarifária, a cada dia mais difundidas, estimulam este processo de extensão periférica das áreas urbanas em regime de baixas densidades residenciais, pois criam uma indiferença do preço pago pelo usuário em relação à distância percorrida ou ao número de linhas de transporte utilizadas. Sabendo que as tarifas do transporte são aproximadamente as mesmas qualquer que seja a distância entre sua residência e os pólos de atração/produção de viagens, ele tende a escolher localizações residenciais em periferias afastadas onde é mínimo o valor dos terrenos (embora permaneça a penalização do tempo de viagem)."
Ora, se um chefe de família de baixa renda procura onde morar em uma região com tarifa única, os custos com transporte coletivo se tornam um problema a menos, não um estímulo para morar na periferia, como o texto parece dar a entender. Afinal, os pobres que não escolhem os bairros distantes escolhem as favelas.
Diminuir os impostos sobre as empresas de ônibus, como defende a Ação Nacional Tarifa Cidadã, é uma outra armadilha sutil, como bem mostrou o texto "Riscos do subsídio federal para o transporte urbano", editorial do jornal Valor Econômico de 17.07.06. A renúncia de impostos dessas empresas de ônibus tende a se reverter primeiro em aumento dos lucros e depois em algum benefício aos usuários. E uma premissa que leva a essa idéia é a de que as empresas estão sobrecarregadas demais financeiramente para que as tarifas sejam reduzidas, e isso costuma ser um exagero da realidade (há casos em que existe até suborno a vereadores, que, como todas as despesas, é incluído na tarifa).
Conclusão 2: outros assuntos relacionados
Valor dos salários. É fato conhecido que alguns trabalhadores andam a pé (às vezes, distâncias de 3 quilômetros ou mais), ou sequer voltam para casa em dias úteis, para usar parte do vale-transporte para as outras despesas do lar. Não é por outro motivo senão o grande impacto das tarifas para algumas categorias que as gratuidades existem (tirados, é claro, os privilégios injustos).
Vitalização das cidades. Centros 24 horas, ou mesmo que funcionem também aos domingos e feriados, opções de lazer, bibliotecas e mesmo alguns serviços, todos abertos aos sábados, domingos e feriados e acessíveis ao público de baixa renda, criarão uma demanda de transporte público. Se as tarifas não forem proibitivas, a cidade como um todo estará mais acessível a esse público (a cidade está praticamente "morta" quando eles não estão trabalhando!). Uma descentralização das cidades também é interessante para o transporte público, pois se houverem centros regionais que gerem demanda, isso pode baixar a produção quilométrica.
Habitação. É admirável o esforço de alguns prefeitos na construção de conjuntos habitacionais para diminuir a deficiência habitacional dos seus municípios. Também é compreensível que esses e os loteamentos para o público de baixa renda sejam em regiões afastadas da cidade, ou em cidades-dormitório. Mas na forma como são construídos, eles serão geradores de viagens a mais para o Centro da cidade ou da metrópole, produzindo mais linhas de grande extensão, baixo índice de passageiros por quilômetro e fatalmente deficitárias. Centros de comércio, serviços e lazer nas proximidades desses bairros beneficiarão não só as populações dos mesmos como as de bairros já existentes e futuros.
Conclusão 3: pensar em soluções
Lembro-me de uma história cujo resumo é o seguinte: um administrador, negligente e desonesto, recebeu certa vez a incumbência de acompanhar a construção de uma casa. Esse administrador trabalhou como sempre, inclusive com materiais de tão má qualidade que os próprios trabalhadores temiam pela ruína da obra enquanto trabalhavam. Ao final, seu patrão, que havia premeditado tudo, o despediu e entregou-lhe a casa como pagamento.
Se parecer antipática a idéia de uma empresa operadora municipal ou de capital misto, procure-se viabilizar pequenas empresas de transporte coletivo, se possível em forma de cooperativas. A retirada de certas empresas tradicionais, mesmo penosa, trará mais ganhos que perdas.
Se for feita uma revisão das gratuidades, que não se vilanize os estudantes, nem se trate as aposentadorias miseráveis e as mais volumosas no mesmo pacote. Caso se ache interessante a concessão de desconto ou gratuidade de acordo com a renda familiar, o maior problema é a seriedade e a eficiência do processo, seguido de qual a quantia do subsídio.
Onde existirem estações de integração, que elas sejam também centros de vivência até o ponto que for possível.
Ônibus rodoviários para linhas metropolitanas mais longas (não são poucos os que viajam mais de 20 km por sentido a cada dia útil) também não devem ser descartados de pronto.
O começo de uma ação séria é pensar em sistemas de transporte coletivo de qualidade, em tarifas mais compatíveis com a renda dos usuários e em como e de onde arrecadar fora do sistema a quantia que for necessária. Sem discutir a fundo a parte política-tributária, não é raro os governos mostrarem como questão de viabilidade o que é questão de interesse. Não é nada simplório dizer que os recursos para fazer algo em favor do usuário carente do transporte público (seja subsídio ou qualquer outra política) já existem em algum lugar entre a União e o Município. Aos que quiserem números, a arrecadação de impostos do ano passado foi quase 40% do Produto Interno Bruto. Isso equivale a cada trabalhador trabalhar cerca de 5 meses apenas para pagar os impostos! Também é importante que mais profissionais envolvíveis no processo troquem justificativas por soluções, talvez construindo projetos com a comunidade. Se listarmos o que já foi considerado "economicamente inviável", incluiremos a abolição da escravatura. Se listarmos as "idéias absurdas", incluiremos a Teoria dos Germes. Se listarmos as "idéias subversivas", incluiremos os governos não absolutistas.
Walter Nunes Braz Junior
graduando em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Viçosa
Viçosa, 27 de outubro de 2 006